sábado, 14 de janeiro de 2023

A locomotiva de dez rodas conjugadas da E.F.D. Pedro II

 Por Jonas Augusto M. de Carvalho

A "Decapod" em fotografia de fábrica. Foto: Baldwin Locomotive Works

Com a expansão da Estrada de Ferro D. Pedro II e consequente aumento do tráfego, uma restrição antiga tornou-se mais evidente: o transito na “2ª seção”, trecho compreendido entre Belém (Japeri) e Barra do Pirai.

Construído no início da década de 1860, esse trecho de aproximadamente 46km de extensão representou um enorme desafio de engenharia e técnica para sua realização pois era necessário vencer a Serra do Mar. Entre as estações de Belém e de Barra do Pirai o desnível era de 327m e para superá-lo bem como o relevo local a ferrovia teve que seguir um traçado sinuoso, com muitos aterros de grande volume, muitos exigindo a construção de muros de arrimo com alvenaria de pedra seca, diversos cortes, pontes e bueiros, além de 16 túneis (sendo o maior o Túnel Grande, com cerca 2.200m de extensão). Manteve-se ao longo desse trecho o raio mínimo de 225 metros e a rampa máxima de 1,8% a fim de se viabilizar a operação da melhor maneira possível.

A construção desse trecho motivou a compra de três locomotivas Baldwin “Flexible Beam”, rodagem 0-8-0T em 1863 para o transporte de material pelas linhas provisórias construídas para dar suporte às obras da linha definitiva. As locomotivas precisavam ser leves e, ao mesmo tempo, ter potência e aderência suficientes, bem como serem capazes de se inscrever em curvas com raio mínimo de 70 m (uma vez que era uma linha provisória). Esse fato é aqui exposto para reforçar o tamanho desafio que foi a construção desse trecho, bem como o que as demais locomotivas iriam enfrentar no dia-a-dia.

No início da década de 1880 o trecho já representava um “gargalo”, onde as composições tinham que ser fracionadas (divididas) para que as locomotivas então existentes conseguissem galgar a serra. As maiores e mais possantes locomotivas disponíveis nessa época eram as seis 2-8-0 fabricadas pela Baldwin em 1877, com cilindros de 20”x24” e cerca de 100.000 lbs (45.359 kg) de peso total.

Para solucionar esse problema, em 1884 foi encomendada uma locomotiva que fosse capaz de trabalhar em rampas de 1,8 por cento, curvas de raio de 180 a 200 metros, com capacidade para tracionar os trens a uma velocidade de 20 quilômetros por hora. A Baldwin respondeu com uma locomotiva com rodagem 2-10-0, a primeira do tipo a ser fabricada; devido às 10 rodas motrizes, o tipo recebeu o nome de Decapod. Essa foi a maior e mais pesada locomotiva construída pelo fabricante até então.

Modelo 3D construído para o simulador Train Sim desenvolvido pela Machine Rail - www.machine-rail.com

A locomotiva foi concluída em março de 1885, recebendo o número de ordem de fabricação 7557 e o número 119 da estrada de ferro. Conforme os critérios da Baldwin, ela foi classificada como 12-38 F 1, sendo 12 o número total de rodas (2 guias+10 motrizes+0 de arrasto) e 38 um fator calculado em relação ao diâmetro dos cilindros; a letra F indica 10 rodas acopladas e o número 1 no final indica que essa foi a primeira locomotiva dessa classe produzida pelo fabricante. Vale ressaltar que essa não foi a primeira locomotiva 2-10-0 fabricada pela Baldwin. A primeira (na verdade foram duas) foi uma encomenda da Compania Constructora Nacional Mexicana para a bitola de 3 pés (914,4mm), sendo fabricadas em junho de 1881, números de série 5697 e 5698. A da Dom Pedro II foi a primeira a recebr a denominação de “Decapod”.

Essa locomotiva foi bastante celebrada quando de sua construção, sendo naquele momento a maior, mais possante e mais pesada locomotiva já fabricada pela Baldwin; representava o mesmo para o Brasil, sendo a maior locomotiva a circular em território nacional. Sua chegada é notícia em várias publicações da época, além dos relatórios da então E.F.D. Pedro II.

O valor pago por ela na época foi de 36:003$256 e, para o seu desembarque no Rio de Janeiro, foi necessário alugar a cábrea (espécie de guindaste para suspender e deslocar grandes pesos) do Arsenal da Marinha por 920$000 (novecentos e vinte mil-réis).

Se ela foi celebrada em sua chegada, o mesmo não se pode dizer em relação à sua carreira, que passou praticamente desapercebida. Notícias referentes a ela pós chegada são muito raras, mesmo nos relatórios da D. Pedro II e depois na EFCB. No relatório de 1885 lê-se:

“Esta locomotiva que pouco tem ainda trabalhado por ter sido recebida no fim da safra, e quando o movimento da serra já havia decrescido bastante, tem sido entretanto bem experimentada e até fins de Março completava um percurso de cerca de 2.500 kilometros, com os trens conduzidos em Dezembro de 1885 e no primeiro trimestre do anno corrente (1886), tendo-se verificado a grande facilidade com que esta locomotiva se inscreve em todas as curvas da serra e a carga calculada que póde ser definitivamente adoptada no serviço do trafego.”

Em 1886, têm-se a notícia de que o Imperador, Dom Pedro II, a batizou como “S. Francisco”.

No relatório de 1887, referente ao ano anterior, aparece a informação de que com a maior utilização de locomotivas Consolidation, pode-se recolher para reparação rápida a locomotiva nº 119 Decapod. No relatório seguinte, novamente a Decapod aparece como tendo parado para reparo.

Em 1892 surge uma notícia no jornal Gazeta de Notícias assinada sob pseudônimo de Dr. Kerozene dizendo que a locomotiva n. 119 estava fora de serviço por “falta de competência” do então chefe da locomoção, o Dr. Faria.

Já em 1895, outra notícia, publicada pelo Jornal do Commercio, com nota redigida pelo Dr. Francisco Pereira Passos onde ele atesta que, em conversa com o Dr. Carlos de Niemeyer, o mesmo lhe disse que a Decapod havia trabalhado apenas entre 1885 e 1889 com apenas três interrupções para reparações e, depois, foi retirada de serviço, tendo, a partir de então, ficado encostada; o que, na visão de Pereira Passos, atestava que a locomotiva “não deu resultado favorável”.

De fato, nos relatórios da EFCB de 1889 a 1906 a Decapod só aparece nos quadros de locomotivas para ser contabilizada, não havendo maiores menções aos seus serviços e reparações. O único fato que merece nota é que em 1906 ela deixou de ser classificada como “locomotiva de carga” para ser classificada como “locomotiva especial”.

Entretanto, curiosa notícia aparece no Jornal do Brasil, de 14 de maio de 1899, onde uma nota diz: “Essa locomotiva (Decapod) foi reformada nas officinas do Engenho de Dentro.” O que indica que a mesma estava sendo utilizada pela EFCB, apesar de não haverem menções mais específicas nos relatórios da estrada.

Sem menções específicas no relatório da EFCB de 1907, onde registrou-se apenas a baixa de 5 locomotivas, a “Decapod” foi baixada, fato confirmado pelo livro Memória Histórica da Estrada de Ferro Central do Brazil, onde há a especificação dessas 5 locomotivas baixadas no decorrer do ano de 1907. Sua baixa coincide com uma grande renumeração de locomotivas feita pela EFCB, onde a sua matrícula “119” foi utilizada então em uma 4-4-0 Baldwin de 1892.

Diante de todos os registros hora disponíveis (ou a falta deles), conclui-se que a locomotiva Decapod não apresentou o desempenho esperado. Além de ter sido pouco utilizada, foi baixada com apenas cerca de 21 anos de serviço. Os motivos para tal não são claros devido a escassez de informações, restando apenas o exercício acadêmico de se imaginar as possíveis causas para tal, baseando-se nas características técnicas da locomotiva e da via permanente donde pode-se especular que: 1- apesar dos esforços da Baldwin para garantir que ela seria capaz de se increver em curvas de raios menores, na prática isso não funcionou tão bem; 2 - Na prática, o esforço de tração não foi suficiente para tracionar a carga desejada; 3 - os custos operacionais e de manutenção não se justificaram em relação à efetividade do serviço dela; 4 - Apesar de não haver certeza em relação à pressão de trabalho, visto que a ficha de especificação da Baldwin não a apresenta e outras fontes divergem, conclui-se que, dependendo da mesma o fator de adesão da locomotiva poderia ser baixo, o que ocasionaria patinação excessiva quando em plena carga subindo as rampas de 1,8% da serra. Essa, provavelmente, pode ser a hipótese mais verossímil, visto que no próprio relatório da EFDPII consta a informação de que o seu fator de adesão era 0,2 menor do que o das locomotivas utilizadas nos Estados Unidos; a “grande locomotiva” no fim teria sido “vítima” das condições da via na década de 1880, que limitou o seu peso. Nessa época, a 2ª seção ainda era composta por trilhos de ferro; enquanto as novas seções recebiam trilhos de aço. Porém, a substituição por iguais de aço no trecho da serra provavelmente foi postergada devido ao fato do intenso movimento de trens e/ou por questões financeiras.

REFERÊNCIAS:

- History of The Baldwin Locomotive Works – 1831-1920;

- Baldwin Locomotive Works (Burnham, Parry, Williams & Co.) – March 1880 to May 1889 – Nos. 5000 to 9999;

- Baldwin Locomotive Works, Engine Specifications Vol. 12, 1884/1885;

- Relatórios da Estrada de Ferro D. Pedro II – entre os anos de 1885 e 1889;

- Relatórios da Estrada de Ferro Central do Brazil – entre os anos de 1889 e 1907;

- Memória Histórica da Estrada de Ferro Central do Brazil – Manuel Fernandes Figueira - Imprensa Nacional – Rio de Janeiro – 1908;

- Estudo Descriptivo das Estradas de Ferro do Brazil – Precedido da respectiva legislação – Cyro Diocleciano Ribeiro Pessôa Junior (funccionario publico) - Imprensa Nacional – Rio de Janeiro – 1886;

- Railways of the World, Frederick A. Talbot – Cassell & Co Ltd. – Londres – 01/01/1924;

- The Development of the “Decapod” - The Evolution of the Ten-Wheels-Coupled, the Heaviest and Most Powerful Single Engine for the Movement of Merchandise, retirado de Railways of the World by Frederick A. Talbot, published 1923;

- Cassier's Magazine - an engineering monthly, Volume XXXVIII, #5, October 1910;

- Gazeta da Tarde, edição 118 de 25 de maio de 1885;

- Diário de Notpicias de 15 de julho de 1886;

- Gazeta de Notícias, edição 329 de 25 de novembro de 1892;

- Jornal do Brasil, 14 de maio de 1899;

- Jornal do Commercio, edição 21 de 21 de janeiro de 1895;

- Jornal do Commercio, edição 97 de 6 de abril de 1892;

- Jornal do Commercio, edição 158 de 8 de junho de 1893;

- O Apostolo-Periodico religioso, moral e doutrinario, consagrado aos interesses da religião e da sociedade de 21 de julho de 1886;

- O Paiz, edição 141 de 23 de maio de 1885;

- O Paiz, edição 198 de 19 de julho de 1886;

- O Paiz, edição 1016 de 18 de julho de 1887;

- The Rio News, edição 34 de 5 de dezembro de 1885;

- The Rio News, edição 33 de 24 de novembro de 1886;

- Revista de Estradas de Ferro, edição 009 de 1885;

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